sexta-feira, 20 de junho de 2014

 “Mulheres do 3º Milênio” 
é um perfil de ajuda e 
informações sobre a cirurgia 
de redesignação sexual

Veridiana e Cibele moderadoras do perfil

As amigas Cibelle de Oliveira Montini e Veridiana Melo Ribeiro  passaram pela cirurgia de redesignação sexual [popularmente conhecida como mudança de sexo] em meados dos anos 2000 - uma em Londres e outra na Tailândia, respectivamente. Após trocarem figurinhas e compartilharem as dificuldades do procedimento, descobriram que, embora o tema esteja em evidência desde os anos 80, há muitas dúvidas que ainda hoje permeiam quem almeja se submeter à cirurgia. Foi então que decidiram se unir e criar o perfil  "Mulheres do Terceiro Milênio" no Facebook. Um grupo de apoio a quem almeja passar pela CRS.

A página, pela sua interatividade, informativa e sensível às situações das integrantes, se tornou o ponto de encontro e informação para 201 mulheres, que dividem confidências, experiências,  e discutem sobre as várias técnicas cirúrgica,  além do pós-cirurgia e os resultados de todo o processo transexualizador -  ainda fazem alertas sobre os males do silicone industrial. "Quando fui fazer a cirurgia, que é tão delicada e irreversível estava desolada e desesperada pela possibilidade do erro e pelas várias dúvidas que não foram sanadas", diz Veridiana. "O grupo foi criado para dividir experiências e passar informação que não tivemos em nossa época", complementa Cibelle.

As dúvidas mais frequentes giram em torno do orgasmo pós-CRS, sensibilidade, funcionabilidade, a primeira relação sexual, os hormônios, os médicos confiáveis e os quais evitar. Dentre as repostas, há vários relatos pessoais, bem como fotos e vídeos das integrantes. "Falamos sobre tudo e divulgamos imagens sem tabus. Assim como a cirurgia, as dúvidas estão divididas em duas fases, a funcional e a estética. O maior erro é a desinformação", defende Cibelle, que pelo trabalho voluntário afirma ter salvado muitas "meninas das mãos de açougueiros"  

Sim, elas encontram diariamente pessoas que enfrentam inúmeros erros decorrentes de uma cirurgia mal feita. De acordo com Veridiana, há mais de 130 mulheres que vivem grande sofrimento por conta dos erros médicos pela CRS, sejam eles funcionais ou estéticos. "Geralmente, o médico que erra no funcional também erra na estética. A estética é importante - e há casos em que ela se parece com tudo, menos com uma vagina - porém a funcionabilidade e a sensibilidade são as maiores reclamações. E, o pior, é que outros médicos se recusam a fazer os reparos. Infelizmente o Brasil está muito longe de uma boa CRS", lamenta.

"Quando muitas meninas divulgam os resultados de alguns médicos, todas ficam horrorizadas. Acabamos prevenindo novos casos".

Os erros que ninguém fala

Dentre os debates, Cibelle aponta para os problemas no atendimento médico - seja ele referente à cirurgia ou a problemas de saúde que não estejam relacionados.  "Os profissionais da saúde em geral não estão preparados para lidar conosco e, em casos de problemas, como uma infecção vaginal, que não está relacionada à cirurgia, muitas vezes não sabem se nos mandam para um ginecologista ou urologista. Ficam perdidos e nos fazem sentir mulheres esquecidas. Não entendo porque o governo dá apoio para as meninas fazerem a redesignação sexual pelo SUS e depois não dá o mesmo subsídio à saúde depois da cirurgia. Não temos sequer apoio psicológico", diz.

"O mais triste é saber que as ONGs e grupos LGBT pouco se importam com essas questões, acham que toda transexual é igual e que todas tem as mesmas necessidades", afirma. "Tanto que o assunto é tratado de maneira superficial em simpósios e encontros de transexuais, como se fosse um tabu, algo misterioso e intocável", concorda Veridiana.

Cibelle afirma ainda que outro grande erro - desta vez, por parte do grupo de mulheres - é querer passar pela cirurgia porque a amiga fez, por status ou por causa do namorado. Ou então, acreditando fielmente que todos os problemas sociais serão resolvidos. "A cirurgia deve ser feita para uma satisfação pessoal, para ter uma satisfação entre o corpo e a mente. O confronto com o espelho era terrível e inaceitável e, em minha opinião, a cirurgia só deve ser feita quando há de fato a negação do órgão masculino e quando a pessoa já passou a ter uma vivência com esta identidade. Não aconselho a redesignação de um dia para o outro".
Mulher mãe, mulher esposa, mulher amiga, mulher ativista

Veridiana frisa que a CRS não se trata apenas de uma cirurgia que vá "mudar a genitália", como é comumente divulgada pela mídia. "Há mudanças significativas na vida de quem realmente sente essa necessidade, não é apenas uma questão estética. Muda tudo em nós. Eu, por exemplo, fiquei tão emotiva que choro por qualquer coisa. Fiquei à flor da pele", conta.

“Somos mulheres como qualquer outra”

Apesar do trabalho, as moderadoras alegam que não aceitam a letra T do LGBT e afirmam que não se identificam como transexuais ou mulheres transexuais. "Não nos reconhecemos como tal. Somos mulheres e não algo intermediário, portanto nos chamamos como mulheres do terceiro milênio. Sentimos que somos mulheres como qualquer outra, não diferenciada. Queremos só ser mais uma na multidão e isso já basta", defende Veridiana, que diz que abandonou a comum busca pelo anonimato para ajudar outras semelhantes a combater o preconceito.


"O significado do nome do grupo é justamente em referência à ideia de que ser mulher é algo muito mais amplo que aquele que foi designado ao nascer. E que neste terceiro milênio, com o avanço da medicina as técnicas de CRS, temos a possibilidade de sermos 100% mulheres. Portanto, somos as mulheres do terceiro milênio", continua.

Cibelle afirma que aceita a palavra "trans mulher" quando usada para explicar o contexto. "[Somente a palavra] trans não gostamos, porque transexual é a pessoa que está em trânsito". Ela explica que a vontade de se livrar do preconceito e o fato de já terem concluído o processo pessoal levam muitas trans mulheres a rejeitarem o passado. "Eu, por exemplo, vivo a minha vida de casada com um italiano, tenho uma filha de quatro anos e moro em Milão há 20. Embora não rejeite falar sobre o assunto, não grito aos quatro cantos que passei pela cirurgia. Não quero virar uma atração de circo. Na minha vida cotidiana, discrição é a palavra".

Vale ressaltar que amigas se conhecem há mais de 20 anos e que, embora estejam distantes - uma mora em Milão e a outra reside em Salvador - nunca perderam contato. "Conhecemo-nos no Rio de Janeiro nos anos 90, quando trabalhávamos na rua. Naquela época trans não tinha muita opção não, viu? Depois nos encontramos em Milão e morando de porta a porta", revela Cibelle. "É uma irmã. Fomos vizinhas há muitos anos e trocamos muitas receitinhas de bolo", conta Veridiana.

Música, campanha e leveza

Apesar dos temas sérios e da preocupação com a saúde do grupo, a página não é subsidiada apenas por debates densos.  Em muitos vídeos e postagens, elas dançam, mandam beijos, fazem desabafos, compartilham fotos e reportagens que saíram na mídia. "Também fazemos várias amizades e é maravilhoso a interação com as diferenças", diz Cibelle. Uma grande integrante da página é Carla Blanche, brasileira radicada na Alemanha, que alegra as integrantes com vídeos com dublagens e recadinhos. Sempre inicia com "um, dois, três, gravando" e dedica uma música às internautas.  

Há também campanhas para arrecadar fundos para a cirurgia do silicone das integrantes e o auxílio voluntário de quem se sensibilizar pelos casos. "Muitas me ligam chorando e deprimidas por não conseguirem se olhar no espelho. Pedem permissão para lançar campanhas para arrecadar o dinheiro necessário para as cirurgias. Embora haja quem se manifeste contra, consideramos válido. Temos duas que colocaram agora", conta Veridiana.  

Com pouco mais de um ano, o grupo é fechado, é até então “secreto” e novo integrantes só entram mediante os convites ou solicitações. Tudo devido ao grande número de denúncias, ataques e bloqueios que sofreu anteriormente. "Não desejamos separatismos e adicionamos pessoas que queiram saber mais sobre a CRS. É importante o espaço porque, muitas vezes, meninas são ridicularizadas ao dizer que querem fazer a cirurgia por outras que não querem. Somos uma minoria", diz Cibelle. "O que eu sempre digo é para cada uma seguir o próprio extinto, pois acredito que ninguém nos conhece melhor que nós mesmas", finaliza Veridiana.

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Texto: Neto Lucon
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